domingo, novembro 06, 2005

O bêbado e a equilibrista II

Charlene, por hábito, insistia em questionar os trejeitos do moleque, agora revestido pela aura de diplomacia. Começara sempre como um jeito discreto e, sem despertar a percepção dos demais, tornara-se o centro das atenções, de modo ligeiro, assim como amanhece o dia. Pela sutileza dos comentários infiltrava-se sorrateiramente nas mentes alheias e roubava-lhes a preciosa confiança de que necessitava para conquistar seu lugar ao sol, no meio da roda. De certo, conduzia a prosa ao sabor de seus caprichos, e todos se deleitavam em suas graciosas extravagâncias.

Não foi necessário muito até que, por ordem da moça, os olhares se voltassem a Carlos. Com eles centenas de flechas acertavam-lhe de súbito, sem perdão, como se toda a superfície de seu corpo fosse corberta pelo desejo alheio de que sua boca retorquisse respostas, justificativas que o fizessem heroí ou simplesmente o denunciassem como o acéfalo da turma.

E, claro, Charlene falava como se não tivesse nada ocorrido. Discorria sobre fatos passados, piadas empoeiradas em que Carlos era sempre o dublê do ator principal, cabendo-lhe a ordem de pancadas, tombos e escombros. O sujeito simplesmente ouvia, às vezes, externando um sorriso amarelado, como se todo o conteúdo alí, em pauta, lhe parecesse interessante.

Tornara-se, contudo, ato cruxial, a ousadia da moça, esboçando a esmo a diversidade de amigos que lhe parecera buscar a felicidade competindo com ela os moçoilos da cidade. E era engraçado, dizia olhando para Carlos, que há alguns que lhes cabia bem o papel, fosse pelo modo de agir, da vestimenta ou delicadeza, mas não o eram. Enquanto outros, maqueados pelo véu do casamento ou por namoradas solitárias, não abandonavam os bastidores. Dissera-o desejando uma reação inusitada de Carlos. Esperava por isso desde que ele chegara. Provocá-lo, como nos velhos tempos, lhe era motivo de aprazia.

Do tempo que se conheceram no colégio, atingira o ponto de causar-lhe aversão. Carlos, por determinado tempo, não suportava a idéia de ver Charlene diariamente. Mudara a rota de retorno para casa, a carteira na sala de aula, o círculo de amigos. A moça, do contrário, especializara-se em irritá-lo. Era a delicadeza do jovem ao falar, suas mãos, o cabelo, sua devoção à justiça e a verdade. Tudo era motivo para surrupiar-lhe à paz. E Charlene sorria, desmanchava-se em gargalhadas. Sempre fora assim. No fundo, gostava do rapaz, e isso, de certa forma, estimulava as discussões entre ambos.

Carlos sempre se contivera na vã tentativa de evitar as discussões abrasivas. Mas, desta feita, sentira que, de uma nova forma, deveria agir. Charlene tornara o ambiente frio, congelado, e todos mergulhados em profundo silêncio, buscavam em solidão uma frase solta, piada, ou o quer que fosse para retomar a prosa. Mas, ninguém, se pronunciou. Carlos, sorriu. Gargalhou, e aos demais, aliaviados, restara-lhes acompanhá-lo.

Charlene, minha suntuosa flor da montanha. Proferira ironicamente Carlos, deixando a ebriedade servir-lhe de escudo e espada. Perdoe-me por imiscuir-me em seus planos, mas não estariaís vós enganada ao creer em tais tolices? (continua)

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